Por Paulo Sérgio Sampaio Figueira
Resumo: Este artigo analisa a formação histórica da estrutura fundiária brasileira, desde o período colonial até os marcos legais contemporâneos. Argumenta-se que, apesar da evolução jurídica e da extinção de institutos como as sesmarias, a transição para um regime de propriedade privada consolidou uma profunda desigualdade no acesso à terra. Esta desigualdade se manifesta na persistente invisibilidade fundiária de povos e comunidades tradicionais, que, mesmo ocupando e preservando territórios há séculos, seguem sem o reconhecimento formal de seus direitos, um reflexo direto de um projeto histórico de exclusão.
1. Introdução: Uma Trajetória de Concentração e Exclusão
A formação do território brasileiro é inseparável da história da destinação de suas terras. Desde a colônia, a política fundiária foi instrumentalizada para servir a um projeto de exploração econômica e controle social, que privilegiou uma elite e marginalizou a grande maioria da população. A análise dessa trajetória, passando pelas capitanias hereditárias, pelo regime sesmarial, pelo vácuo legislativo pós-independência e pela Lei de Terras de 1850, revela que a simples substituição de institutos jurídicos não foi capaz de desmontar a estrutura concentradora então estabelecida.
Mesmo após a redemocratização e com a consolidação de um arcabouço jurídico aparentemente robusto – com o Estatuto da Terra (1964) e a Constituição Cidadã de 1988 –, verifica-se a persistência de uma gritante “invisibilidade fundiária”. Este conceito refere-se à situação de milhões de brasileiros, em especial comunidades tradicionais, quilombolas, indígenas e ribeirinhas, que, embora sejam os legítimos ocupantes e guardiões de vastas porções do território nacional, não detêm o título de propriedade. Esta falta de reconhecimento formal os torna vulneráveis a conflitos, grilagem, despejos e à impossibilidade de acessar políticas públicas, perpetuando um ciclo histórico de injustiça.
2. OS ALICERCES COLONIAIS: CAPITANIAS E SESMARIAS
O sistema de Capitanias Hereditárias (1534) foi a primeira grande estrutura de organização territorial, transferindo a administração de vastas faixas de terra para particulares (donatários) em prol da Coroa Portuguesa. Este modelo, embora em parte fracassado, estabeleceu desde o início a lógica do latifúndio e da descentralização do poder fundiário.
Sucedendo e detalhando este modelo, o regime de sesmarias (1530-1822) tornou-se o principal mecanismo de distribuição de terras. Baseado no ideário de “dar a quem pode produzir”, o sistema na prática concedeu porções imensas a uma minoria de abastados, consolidando a concentração fundiária.
A obrigação de cultivo era pouco fiscalizada, dando origem aos “latifúndios de papel”. Crucially, as sesmarias ignoraram por completo os direitos de posseiros e, sobretudo, das populações indígenas, que tiveram seus territórios sistematicamente invadidos e apropriados. Este foi o embrião da invisibilidade: a lei passou a valer apenas para uma parcela da sociedade, enquanto a grande maioria ocupava a terra sob a égide da informalidade e da não reconhecibilidade jurídica.
3. O VÁCUO LEGISLATIVO E A LEI DE TERRAS DE 1850: A LEGALIZAÇÃO DA DESIGUALDADE
A independência do Brasil em 1822 e a consequente extinção das sesmarias criaram um período de vácuo legislativo (1822-1850). Sem uma norma clara, a ocupação de terras públicas tornou-se caótica, intensificando-se os conflitos entre posseiros, grileiros e grandes potentados rurais. Foi neste cenário que a elite agrária, temendo que o fim da escravidão levasse a uma pressão por acesso à terra, articulou a criação da Lei de Terras n.º 601 de 1850.
A Lei de Terras foi um marco perverso na história fundiária brasileira. Ao estabelecer que as terras devolutas só poderiam ser adquiridas por compra e não mais por ocupação ou doação, ela efetivamente “trancou a porta” do acesso à propriedade para a massa de trabalhadores livres, ex-escravizados e imigrantes pobres. Como apontado no levantamento, a lei concedeu título aos que já estavam ocupando, mas, na prática, isso beneficiou sobretudo aqueles que já detinham poder econômico e político, legitimando posses anteriores muitas vezes irregulares. A lei, assim, não resolveu o problema; pelo contrário, consolidou juridicamente a estrutura de concentração e a exclusão que perdura até hoje, tornando a terra uma mercadoria inacessível para muitos.
4. DO CÓDIGO CIVIL DE 1916 AO ESTATUTO DA TERRA: AVANÇOS NA TEORIA, DIFICULDADES NA PRÁTICA
O Código Civil de 1916 refletiu uma visão patrimonialista e individualista da propriedade, tratando-a como um direito absoluto, sem qualquer menção à sua função social. Esta visão civilista era profundamente inadequada para enfrentar as mazelas do campo brasileiro.
Apenas em 1964, com o Estatuto da Terra, o Brasil tentou reorientar sua política fundiária. Criado em um contexto de pressão por reformas de base, o Estatuto foi um marco ao introduzir conceitos revolucionários para a época, como a função social da propriedade e a previsão da desapropriação de latifúndios improdutivos para fins de reforma agrária. Pela primeira vez, o Estado se obrigava a “garantir o direito de acesso à terra para quem nela vive e trabalha”. No entanto, a implementação do Estatuto, especialmente durante o regime militar, foi limitada e contraditória, priorizando a colonização de fronteiras em detrimento da desapropriação massiva de latifúndios consolidados.
5. A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E OS NOVOS INSTRUMENTOS: A LUTA PELO RECONHECIMENTO
A Constituição Federal de 1988 representou um divisor de águas. Ela elevou a função social da propriedade a princípio constitucional (art. 5º, XXIII) e detalhou seus requisitos no artigo 186. Fortaleceu os instrumentos para a reforma agrária (art. 184) e, de forma inédita, reconheceu direitos territoriais específicos e originários dos povos indígenas (art. 231) e das comunidades quilombolas (art. 68 do ADCT).
Este foi um contraponto jurídico direto à histórica invisibilidade. A Carta Magna tentou corrigir a dívida histórica com esses grupos, afirmando que seu direito à terra não deriva de um título de compra, mas de sua existência, história e cultura. No entanto, a efetivação desses direitos tem sido extremamente lenta, marcada por barreiras políticas, orçamentárias e por uma forte reação dos setores ruralistas. A morosidade na demarcação de terras indígenas e na titulação de territórios quilombolas é a face contemporânea da mesma lógica excludente.
6. OS MARCOS CONTEMPORÂNEOS E A PERMANÊNCIA DO CONFLITO
A criação de leis específicas para regularização fundiária, como a Lei nº. 11.952/2009 (para a Amazônia Legal) e a Lei nº. 13.465/2017, buscou agilizar a titulação. No entanto, essas normas são alvo de intenso debate. Ao facilitar a regularização de ocupações consolidadas, especialmente em terras públicas, críticos apontam o risco de se legitimar a grilagem e premiar invasões recentes, em detrimento dos direitos de comunidades tradicionais que ali vivem há gerações.
Este debate culmina na polêmica em torno do chamado “marco temporal”, tese segundo a qual só teriam direito à terra os povos indígenas que estivessem na posse do território na data da promulgação da Constituição (5 de outubro de 1988). A adoção deste marco representaria a consagração jurídica de séculos de violências e expulsões, tornando invisíveis todos os grupos que foram removidos à força de seus territórios antes dessa data. Projetos de Lei como o PL 2.633/2020 e o PL 510/2021, que ampliam a possibilidade de regularização de grandes áreas e propõem marcos temporais flexíveis, são vistos por movimentos sociais e especialistas como uma tentativa de reverter os avanços da CRFB/88 e reacomodar os interesses do agronegócio em terras públicas.
7. CONCLUSÃO: A INVISIBILIDADE COMO PROJETO INACABADO
A trajetória da destinação de terras no Brasil demonstra que a passagem do regime sesmarial para o de propriedade privada não foi um movimento de democratização, mas de consolidação de privilégios. A Lei de Terras de 1850 foi o grande nó que amarrou a estrutura fundiária excludente, transformando um direito fundamental – o de ter um lugar para viver e trabalhar – em um privilégio mercantil.
A invisibilidade fundiária rural, que atinge principalmente as comunidades tradicionais, não é um acidente ou uma falha pontual do sistema. É, antes, a consequência lógica e persistente de um modelo que, por cinco séculos, priorizou a acumulação em detrimento da justiça social e do reconhecimento de direitos.
Apesar dos significativos avanços constitucionais, a lentidão na titulação, a pressão sobre os territórios e as tentativas de flexibilizar a legislação mostram que a luta pelo reconhecimento pleno dessas comunidades é a mesma luta contra uma herança histórica que teima em não passar. Enquanto o título da terra for um privilégio e não um direito, o Brasil continuará dividido entre os que são visíveis perante a lei e os que, embora sejam a base cultural e ambiental do país, permanecem na sombra da insegurança jurídica.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850. Dispõe sobre as terras devolutas do Império. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l0601-1850.htm. Acesso em: 16 nov. 2025.
BRASIL. Lei n.º 4.504, de 30 de novembro de 1964. Dispõe sobre o Estatuto da Terra, e dá outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4504.htm. Acesso em: 16 nov. 2025.
BRASIL. Constituição da Republica Federativa do Brasil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 16 nov. 2025.
BRASIL. Lei n.º 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l3071.htm. Acesso em: 16 nov. 2025.
BRASIL. Lei n.º 11.952, de 25 de junho de 2009. Dispõe sobre a regularização fundiária das ocupações incidentes em terras situadas em áreas da União, no âmbito da Amazônia Legal; altera as Leis nos 8.666, de 21 de junho de 1993, e 6.015, de 31 de dezembro de 1973; e dá outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l11952.htm. Acesso em: 16 nov. 2025.
BRASIL. Lei n.º 13.465, de 11 de julho de 2017. Dispõe sobre a regularização fundiária rural e urbana, sobre a liquidação de créditos concedidos aos assentados da reforma agrária e sobre a regularização fundiária no âmbito da Amazônia Legal; institui mecanismos para aprimorar a eficiência dos procedimentos de alienação de imóveis da União; altera as Leis n os 8.629, de 25 de fevereiro de 1993 , 13.001, de 20 de junho de 2014 , 11.952, de 25 de junho de 2009, 13.340, de 28 de setembro de 2016, 8.666, de 21 de junho de 1993, 6.015, de 31 de dezembro de 1973, 12.512, de 14 de outubro de 2011 , 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), 11.977, de 7 de julho de 2009, 9.514, de 20 de novembro de 1997, 11.124, de 16 de junho de 2005, 6.766, de 19 de dezembro de 1979, 10.257, de 10 de julho de 2001, 12.651, de 25 de maio de 2012, 13.240, de 30 de dezembro de 2015, 9.636, de 15 de maio de 1998, 8.036, de 11 de maio de 1990, 13.139, de 26 de junho de 2015, 11.483, de 31 de maio de 2007, e a 12.712, de 30 de agosto de 2012, a Medida Provisória nº 2.220, de 4 de setembro de 2001, e os Decretos-Leis n º 2.398, de 21 de dezembro de 1987, 1.876, de 15 de julho de 1981, 9.760, de 5 de setembro de 1946, e 3.365, de 21 de junho de 1941; revoga dispositivos da Lei Complementar nº 76, de 6 de julho de 1993, e da Lei nº 13.347, de 10 de outubro de 2016; e dá outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13465.htm. Acesso em: 16 nov. 2025.
BRASIL. PL 2633/2020. Altera as Leis nºs 11.952, de 25 de junho de 2009, 14.133, de 1º de abril de 2021 (Lei de Licitações e Contratos Administrativos), e 6.015, de 31 de dezembro de 1973, a fim de ampliar o alcance da regularização fundiária; e dá outras providências. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2252589&fichaAmigavel=nao. Acesso em: 16 nov. 2025.
BRASIL. PL 510/2021. Dispõe sobre a regularização fundiária, por alienação ou concessão de direito real de uso, das ocupações de áreas de domínio da União; estabelece como marco temporal de ocupação a data de 25 de maio de 2012, quando foi editado o Código Florestal; amplia a área passível de regularização para até 2.500 hectares; dispensa vistoria prévia da área a ser regularizada, podendo ser substituída por declaração do próprio ocupante; e dá outras providências. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/146639. Acesso em: 16 nov. 2025.
Paulo Sérgio Sampaio Figueira – Advogado, Administrador de Empresa, Ciências Agrícolas, Professor Universitário com pós-graduação em metodologia do ensino superior, Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, Direito Eleitoral, Arquivologia e Documentação, com mestrado em Direito Ambiental e Políticas, Presidente da Comissão de Meio Ambiente da OAB/AP, Conselheiro do COEMA, Vice-Presidente da Região Norte da Comissão Nacional de Assuntos Fundiário da UBAU, Presidente Nacional de Meio Ambiente e Agrário da UBAM
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