Uma recente e impactante decisão da Justiça Federal determinou a suspensão das operações da Usina Termelétrica Candiota III, no Rio Grande do Sul. Este ato não representa apenas a aplicação da lei em um caso concreto, mas sinaliza uma crescente e preocupante interferência do Poder Judiciário na elaboração da política energética e ambiental do Brasil. Ao ir além do controle de legalidade e ditar os rumos de uma complexa estratégia de Estado, a sentença, embora bem-intencionada, desafia os limites constitucionais da separação de poderes e levanta um questionamento fundamental: quem deve formular as políticas públicas do país?
Este artigo analisa criticamente a decisão, focando não na validade da pauta climática, mas nos riscos sistêmicos que surgem quando o Judiciário assume para si a tarefa de elaborar políticas, uma função que a Constituição designa aos poderes Executivo e Legislativo.
A Judicialização da Política Pública: Da Aplicação da Lei à Elaboração da Estratégia
O papel tradicional do Judiciário é garantir que as ações do poder público e dos entes privados estejam em conformidade com o ordenamento jurídico. No caso Candiota, contudo, a corte transcendeu essa função. Ao ordenar que a União e o Estado do Rio Grande do Sul criassem um “Plano de Transição Energética Justa”, o juízo não apenas exigiu o cumprimento de uma lei, mas interferiu diretamente no processo de elaboração de uma nova política pública.
A formulação de uma política energética nacional é uma das atribuições mais complexas do Estado. Envolve um delicado balanço entre segurança do abastecimento, modicidade tarifária, desenvolvimento econômico, inovação tecnológica e responsabilidade ambiental. Essa equação é resolvida através de um processo eminentemente político e técnico, conduzido por ministérios, agências reguladoras e pelo Congresso Nacional, que possuem a legitimidade democrática e os recursos para agregar e ponderar os múltiplos interesses da sociedade.
A decisão judicial, em contraste, representa a visão de um único ator do sistema de justiça sobre como essa política deve ser. Os réus no processo, como a Eletrobras CGT Eletrosul e a União, argumentaram precisamente que a ação configurava uma “tentativa de ingerência indevida do Poder Judiciário sobre área cuja atuação incumbe, primordialmente, aos Poderes Executivo (…) e Legislativo”. Ao determinar a criação de um plano, o Judiciário substitui o debate amplo e multifacetado por uma diretriz singular, interferindo no mérito administrativo e na discricionariedade técnica que são essenciais para uma boa governança.
A Erosão da Competência Técnica e Regulatória
A interferência judicial se manifesta também na desvalorização da expertise de órgãos técnicos. Agências como o IBAMA e a FEPAM são as detentoras do conhecimento especializado para conduzir processos de licenciamento ambiental. A decisão de Candiota, ao impor a inclusão de um “componente climático” de forma retroativa e com contornos definidos pelo juízo, interfere na autonomia técnica dessas agências para definir metodologias e critérios.
A defesa das agências e das empresas baseou-se no fato de que as operações estavam amparadas por licenças válidas, emitidas conforme as normas vigentes à época. A sentença, ao invalidá-las com base em uma nova interpretação das políticas climáticas, gera uma profunda insegurança jurídica. Investidores e operadores do setor energético passam a questionar a validade de qualquer licença, que pode ser revista a qualquer momento por uma nova tese jurídica, independentemente do cumprimento das regras estabelecidas. Essa instabilidade regulatória é um forte desincentivo ao investimento em infraestrutura, seja ela qual for.
As Consequências da Elaboração de Políticas no Judiciário
A interferência judicial na elaboração de políticas gera riscos práticos que não podem ser ignorados. Uma decisão focada em um único aspecto – neste caso, a mitigação de emissões de uma fonte específica – tende a negligenciar outros fatores vitais para o interesse público.
Segurança Energética: O planejamento energético nacional, elaborado pelo Executivo, considera a usina de Candiota como parte de um sistema interligado que garante a estabilidade da rede. A sua paralisação por ordem judicial interfere diretamente nesse planejamento, ignorando o papel da usina na segurança do abastecimento, como alertado pelos réus.
Impacto Econômico e Social: A elaboração de uma política de transição energética pelos canais adequados envolveria, necessariamente, um longo processo de consulta com as comunidades e trabalhadores afetados. O próprio Município de Candiota demonstrou preocupação com o colapso econômico local. A decisão judicial, ao acelerar o processo sem que as alternativas estejam maduras, interfere na capacidade do Estado de conduzir uma transição que seja, de fato, “justa”.
Conclusão: A Necessidade de Respeito às Fronteiras Institucionais
O caso Candiota é um divisor de águas no debate sobre os limites da atuação judicial. A proteção ao meio ambiente é um dever constitucional, e o Judiciário é seu guardião. Contudo, há uma linha clara entre ser guardião da lei e ser o elaborador da política.
A tarefa de desenhar o futuro energético e ambiental do Brasil não pode ser transferida para os tribunais. A complexidade do tema exige um robusto processo democrático, que pondere todas as variáveis e ouça todas as vozes. A interferência judicial, mesmo que movida pelas melhores intenções, arrisca gerar políticas fragmentadas, tecnicamente frágeis e socialmente custosas. O caminho para uma transição energética eficaz e justa não passa pela judicialização da estratégia, mas pelo debate público nas esferas competentes e no fortalecimento das instituições responsáveis por sua elaboração.
Processo n. AÇÃO CIVIL PÚBLICA Nº 5050920-75.2023.4.04.7100/RS
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Rodrigo Birkhan Puente – Advogado, Especialista em Direito Ambiental pela Unisinos, Consultor Jurídico da Sociedade Brasileira de Arborização Urbana – SBAU (2014 – 2017)
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